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Belo Horizonte,01/05/2025

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O que nasce na velhice?

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O que nasce na velhice?
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As crianças se aproximaram dos meus pais. Dois meninos na faixa de 10 anos. Aquele de óculos era uma euforia nas luminosidades do olhar e na textura das palavras.


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O menino fincou os olhos nos meus pais como quem lança dardos, e eram dardos alegres. De repente, disse: “Vocês fazem brinquedos! Vocês são gênios!”.


Meus pais ouviram as palavras com a surpresa de quem recebe um Prêmio Nobel no meio da rua. Tudo isso aconteceu na calçada, de um domingo qualquer, de uma avenida.


Porque a Avenida Paulista, em São Paulo, nos domingos se fecha para os carros e abre toda a sua extensão aos pedestres, bicicletas, cantorias, mágicas e muito mais.


E meus pais vão às vezes à Paulista para estender no chão um tecido de chita e espalhar os brinquedos que inventam com suas próprias mãos.


Chegam inspirados na cultura popular e na nossa ancestralidade nordestina, para cavar um cantinho de brincadeira no concreto cinzento.


O menino que chamou meus pais de gênios não sabe, mas suas palavras se infiltraram na nossa história como ouro. Palavras preciosas por serem precisas.


Meus pais são gênios – sou suspeito para falar – e só recentemente se perceberam capazes de fazer brinquedos das mais variadas formas e cores. Entretanto, toda essa arte estava esperando neles o momento de nascer.


Um recomeço na velhice


Meus pais se chamam Josefa e José e têm hoje 65 anos. Foi uma surpresa descobri-los como artistas depois de passar todo o tempo olhando para cada um deles com as definições de suas ocupações ao longo dos anos.


Minha mãe, desde a saída do sertão da Bahia, na vida de migrante aqui em São Paulo, trabalhou como doméstica e depois se embrenhou nas costuras até o último fio de cabelo e de linha. Meu pai, por fim, se dedicou em andaimes, cimento, blocos e hortas.


Até o ano de 2015, quando uma crise de dor feroz revelou no meu pai um aneurisma na perna. Minha mãe, em seguida, em 2016, recebeu o diagnóstico: câncer de intestino.


Arrastaram-se meses de incerteza e cansaço. Meses em que fiquei muito perto dos dois, filho único que sou, e nos descobrimos outros.


Terminados os tratamentos, Dona Josefa e Seu José não tinham mais energia para seguir nas suas atividades anteriores, agora com corpos um tanto devastados.


Mais tempo, mais vazio. Finalmente, um dia, um tio por parte de mãe, tio Raimundo, trouxe um presente. Mané Gostoso é o nome do brinquedo que meus pais ganharam e os remetia à infância passada no sertão nordestino.


Basta pressionar as duas varetas de madeira do brinquedo para ver um boneco em rodopios. Logo depois, eles se inspiraram no presente e, com uma madeira abandonada em casa, inventaram a sua versão do boneco.


Como eu sabia que um pedido externo seria recebido em tom mais firme, não hesitei em brincar uma mentira séria: “Meus amigos encomendaram cinco brinquedos como este que vocês fizeram!”.


Segundo é nascente


envelhecer

Olhar para o tempo que passa, com sabedoria, é ter a certeza de que a vida pede intensidade e presença todos os dias


Depois da primeira encomenda, que na verdade era minha, vieram outros pedidos, dessa vez, reais. Mais e mais brinquedos nasceram e, ao mesmo tempo, um desvio radical: hoje meus pais ocupam parte dos dias na criação de suas obras brincantes.


“Para não brigar o dia todo, tem que ficar cortando madeira, né?”, comenta Dona Josefa, rindo. “Mudou muita coisa depois da doença. Diante do que eu tive, fiquei são, e para mim isso é uma relíquia”, diz Seu José.


Eles me fazem pensar sobre os nascimentos que germinam enquanto alguém envelhece. Sou poeta e, para mim, a palavra nascimento tem um encanto primordial: todo segundo é uma nascente arejada no tempo, a cada dia que nasce uma coisa primitiva se inaugura no corpo.


Enfim, depois dos percalços enfretados pelos meus pais, nasceu em mim um filho diferente, com mais responsabilidades, quando nasceu nos meus pais o envelhecimento agudo de dor.


Em entrevista com Ana Claudia Quintana Arantes, médica geriatra e especialista em cuidados paliativos – abordagem com o propósito de prestar assistência a pessoas com doenças que ameaçam a vida –, ouvi palavras certeiras sobre como os filhos podem se aproximar dos pais na velhice.


“Perguntem aos seus pais: como te ajudo a viver tudo isso que você está vivendo?”, ensina ela, que é autora também da obra A Vida é um dia que Vale a Pena Viver (Sextante).


O ânimo do coração invencível


Na obra do poeta Manoel de Barros, Ana Claudia encontrou uma palavra para não esquecer: “amorável”. “Para você envelhecer bem, precisa se tornar uma pessoa ‘amorável’, que está aberta ao amor que pode ser oferecido no cuidado.”


“Mas muita gente diz: não quero dar trabalho. Quem diz isso também vai dar trabalho, porque amaldiçoar o tempo todo o fato de dar trabalho é recusar a dedicação de quem cuida.”


Ela conta que, durante os cinco meses em que se recuperava de uma fratura complicada no pé, as pessoas próximas que compartilharam esse momento com ela a ajudaram muito.


Principalmente pelo fato de estarem por perto, confiando na sua capacidade de retomar movimentos e desfrutando do tempo juntos. Ana insiste: um dos fatores mais importantes na velhice é a qualidade das relações.


A conversa com a médica Ana Claudia Arantes me faz lembrar da personagem Úrsula Iguarán, do livro Cem Anos de Solidão, escrito pelo colombiano Gabriel García Márquez.


Úrsula escondia sua cegueira de toda a família e não havia ninguém disposto a prestar atenção nela.


“O ânimo do seu coração invencível a orientava nas trevas. Quem reparou no seu andar trôpego e quem tropeçou em seu braço de arcanjo sempre erguido à altura da cabeça pensou que ela a duras penas aguentava o próprio corpo, mas ninguém achou que estivesse cega”


, diz um dos trechos sobre Úrsula, que a todo instante silenciosamente nos questiona: você realmente conhece quem você diz que conhece?


Uma vida ocupada pela intensidade


Ana me recomenda conversar com outra Ana, para ouvir uma perspectiva diferente sobre o tema do envelhecimento. Foi assim que conheci a Ana Michelle Soares, jornalista que descobriu aos 28 anos um câncer de mama e, quatro anos depois, soube que estava com metástase.


Aos 36 anos, ela diz: “Sei que não vou envelhecer, vou morrer jovem. Todos os dias agora têm a intensidade de um ano. Se fosse possível, eu te emprestaria cinco minutos dentro de mim, para você ver a vida do meu jeito. Tenho muita vontade que as pessoas toquem isso que eu estou tocando, esse tesão pela vida”.


É possível acompanhar a Ana Michelle no Instagram paliativas, um perfil criado junto com sua amiga Renata Lujan, que também tinha câncer metastático e faleceu em 2018.


Por meio do Instagram, da presença na mídia e também do seu livro que será publicado em breve, Ana Michelle se posiciona como ativista em cuidados paliativos.


“A gente não sabe quanto tempo dura uma vida inteira. E acho uma pena quem desperdiça a oportunidade de envelhecer. Hoje em dia algumas pessoas se preocupam com a velhice apenas no sentido estético. Tem gente que nem comemora aniversário! Envelhecer é um privilégio que não vou ter. Eu saberia o que fazer. Eu saberia o que fazer com cada ruga. E minha preocupação não seria ocultar nenhuma delas”, afirma Ana Michelle.


Continuar aprendendo, inclusive na velhice


envelhecer

O que o tempo nos dá é oportunidade de fazermos as pazes com a nossa história todos os dias. E isso só depende de cada um


E quando ela se lembra que a maioria das histórias que povoam hoje sua memória aconteceu nos anos da doença, porque ela se permitiu embarcar em novas situações, vejo nas suas palavras a novidade dos meus pais esculpindo.


Ansiosos para visitar uma escola que encomendou um brinquedo diferente, e percebo que inúmeras experiências vividas por eles nos dias de hoje eram inimagináveis anos atrás.


Eles me mergulharam na sensação de surpresa com os caminhos desconhecidos que se abrem quando há espaço. Nos seus fazeres com madeira, eles vivem hoje a resposta a uma das perguntas que Ana Claudia deixou comigo: “O que preciso aprender para continuar aprendendo?”.


Um presente recente que dei aos meus pais foi uma marionete. Por fim, dois meses depois, minha mãe já inventou outras seis, com cores e formas do seu imaginário.


A cada brinquedo que nasce, a capacidade de inventar o presente se fortalece. E quando alguém ouve a história deles e diz “Nossa, que lindo caso de superação”, eu costumo responder: a palavra “superação” não dá conta do que aconteceu com eles, não alcança a tarefa de nomear o envelhecimento de vidas exauridas pelo trabalho e por uma bruta realidade.


A beleza e a transformação que encantam na história deles não existem sem o peso que ainda os atravessa, contudo.


“O tempo é cru, vasto, finito. A partir dele nasce a possibilidade de uma vida ainda mais íntima com o corpo, ainda mais ocupada pela intensidade que é cada segundo”


O tempo do osso


Ana Claudia Quintana usou a expressão “tempo do osso” para falar sobre os meses que a fratura a fez se dedicar à recuperação.


Meses vividos com afeto, sem pressa, em contato direto com a polpa dos dias. Viver o “tempo do osso” tem muita relação com a arte dos meus pais, com a força da Ana Michelle, com a velhice. Assim, o tempo do osso é cru, vasto, finito.


A partir dele nasce a possibilidade de uma vida ainda mais íntima com o corpo, ainda mais ocupada pela intensidade que é cada segundo.


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André Gravatá é escritor, poeta, se encanta e se surpreende profundamente a cada poema e brinquedo que vê nascer.




Conteúdo publicado originalmente na edição 209 da Vida Simples


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