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Eu canto desde muito pequena. Minha mãe conta que, quando eu tinha apenas três anos, durante um congresso, desapareci por um momento e ela ficou desesperada. De repente, lá estava eu, no palco, em cima de uma cadeira, cantando. Ela soube depois que eu “puxei o paletó” do organizador do evento e falei: “Quero cantar”. Ele achou graça naquela menininha ousada e atendeu ao pedido. O refrão da música, curiosamente, dizia: “Joguei a tristeza fora, mandei embora do meu coração.” Sinto não ter registros da cena, mas ainda me lembro da força curativa daquela melodia e de como eu a interpretava, abrindo os braços no refrão.

O poder do canto

Juntas, experimentamos o poder curador da voz e da presença coletiva. Foi como ser elevada por uma potente espiral. Os cantos de cura, vale lembrar, estão presentes na maior parte das religiões e culturas, como expressões de louvor ou lamento, em todos os tempos. Em rituais espirituais, os mantras ecoam há milênios nas práticas hinduístas, enquanto os “rezos” dos povos originários conectam as vozes humanas à terra e aos espíritos ancestrais. As tradições druídicas e celtas também honravam a natureza e os deuses por meio de cânticos sagrados, buscando harmonia com o mundo ao redor.

“Em quase todas as culturas, no momento da criação, os deuses dão canções ao seu povo, dizendo-lhes que seu uso irá chamar os deuses de volta a qualquer instante, que a canção irá lhes trazer o que precisarem, e transformar ou eliminar o que não quiserem mais”, escreve Clarissa Pinkola Estés, no clássico Mulheres que correm com os lobos (Rocco). Em um trecho belíssimo, ela afirma que “o canto brota de uma fonte misteriosa que anima toda a criação, todos os animais, seres humanos, árvores, plantas e tudo que o ouvir”.

Na literatura oral, “tudo o que tem seiva tem canto”. Na Irlanda, por exemplo, conta Clarissa, o poder é invocado pelo canto mágico. Numa lenda local da Islândia, uma pessoa cai em penhascos gelados e tem um membro decepado, mas ele é recuperado por meio de uma canção. No flamenco, o cante (canto) surgiu antes da dança, como uma forma de aliviar as dores e contar as histórias de um povo sofrido. Da mesma forma, as lavadeiras à beira dos rios cantam enquanto esfregam as roupas, transformando o labor em uma melodia que parece limpar mais do que o tecido, alvejando corações. Diz a autora:

“A música é um tipo especial de linguagem que realiza essa função de um jeito impossível para a voz falada.”

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Muito além da mente

“Quando canto, meus males espanto”, afirma Devi, nossa guia na Cura do Feminino. “Porque, ao cantar, abro meu coração. Saio da razão, que traz confusão. A mente mente. O coração se expande”. Para ela, os cantos possuem poderes ocultos, capazes de acessar dimensões que transcendem o campo mental. “Eles têm o poder de liberar e despertar partes silenciadas em nós”, diz. Quem ouviu a voz potente da consteladora Carolina Oliveira ecoando pela sala, onde cerca de 40 mulheres formavam uma roda, naquele dia, não duvida do poder dos mantras.

Ela ofertou um canto de boas-vindas que tocou a todas. Mas conta que, até há pouco tempo, tinha vergonha de cantar em público. “Minha voz nem saía”, diz. No entanto, ao se comprometer com a prática, evoluiu. “Fiquei firme, cantando todos os dias, e minha voz começou a mudar.” Além de afiar as cordas vocais, Carol descobriu que o canto é uma porta para o autoconhecimento e para um estado de devoção profunda. “Os mantras levam ao ‘silenciar interno’, que me liga ao divino.”

A vibração sonora tem o poder de alcançar nossas células, modificando padrões físicos, mentais e emocionais

Vibração de Om e Ma

Ainda na abertura do Festival, Devi convidou as participantes a entoar os mantras Ma e Om. “Considerado o som da criação do Universo, o Om vibra luz e consciência, “como uma chave que abre um espaço dentro de nós,” disse, observando que o som tem uma polarização masculina. Já o “Ma” vibra o amor divino e incondicional, associado à essência criadora feminina. Não por acaso, a sílaba está presente na palavra mãe em diversas línguas.

O sound healing e a “música medicina”, com letras que reverberam devoção e cura, vêm ganhando cada vez mais adeptos. Devi afirma que os mantras encorajam a transformação. Na sua visão, tudo é energia, e as células vibram em frequências específicas. Quando expostas a novas vibrações, as frequências atuariam como códigos capazes de modificar os padrões físico, emocional e mental. “É como aprender um novo idioma”.

“Corpo e voz são uma coisa só. Gosto de pensar na voz que dança e no corpo que canta. O corpo tem sua melodia, harmonia, ritmo, assim como a voz tem a sua própria coreografia e movimento”

Canto e o coquetel de hormônios

“Para mim, corpo e voz são uma coisa só”, diz a cantora, atriz e preparadora vocal Mara Braga. “Gosto de pensar na voz que dança e no corpo que canta. O corpo tem sua melodia, harmonia, ritmo, assim como a voz tem a sua coreografia e movimento”, diz. Ela lembra que o canto é nosso primeiro instrumento. O bebê, nos primeiros meses de vida, trabalha musicalmente, vocalizando sons, se mexendo e batendo palminhas. “Por isso, a voz é movimento. Quando canto, estou me expressando”.

Quando entoamos uma simples melodia, um coquetel de hormônios é liberado no corpo. “Primeiro, liberamos endorfina, o hormônio do bem-estar e da satisfação, ajudando a aliviar o estresse. Também liberamos ocitocina, ligada ao prazer e amor, e ainda dopamina e a serotonina, associadas à motivação e à sensação de felicidade.” A respiração também é importante nesse processo. “O ar é o combustível da voz,” afirmou. Para os cantores, a consciência do processo respiratório e o controle do fluxo de ar são fundamentais para sustentar notas e produzir efeitos vocais desejados.

Cantar, para Mara, é também um ato de liberdade e coragem, que expõe o cantor de maneira vulnerável, como se estivesse “nu para o mundo.” Essa vulnerabilidade permite liberar emoções pela letra, pela própria voz e pela música que se evoca. Ela mesma encontrou no canto uma ferramenta de cura, após um acidente quase fatal durante um mergulho em 2019. A experiência-limite a fez perceber a necessidade de viver plenamente e resgatar seus desejos esquecidos. Mergulhou, então, no estudo da técnica e da teoria vocal, e encontrou no próprio mar a inspiração para vencer uma depressão e compor as canções do álbum “MarAdentro”. Permeadas por metáforas, as letras refletem sua jornada de superação, unindo a arte à experiência de cura e renascimento.

Nas mais diversas culturas, a voz se curva à melodia com o intuito de louvar o divino. Assim, céu e terra se encontram

Sons de alta frequência

Rajnee Om, mentora de saúde integral, compartilhou conosco o canto indígena “xoxo parante”, de origem Yawanawá, da região do Acre. Repetimos bastante essas duas palavras cantadas pelos indígenas para acalmar crianças. Ela explicou que esse canto é um “rezo” com uma frequência que tem o poder de promover curas, equilibrando e elevando a vibração de quem o escuta. “O som tem esse poder de transformar, de curar através das vibrações, das frequências. E quando existe um “rezo” com intenção sagrada, divina, é esse campo que acessamos”, afirmou, destacando o potencial espiritual dos cantos indígenas.

Awarani, que trabalha com os cantos dos indígenas da América do Norte, chegou tocando seu tambor e levantando a voz das mulheres. A filosofia do Caminho Vermelho, que orienta seu trabalho, é uma prática espiritual que busca o equilíbrio com a natureza, a comunidade e o próprio ser. “É sobre viver com humildade, compaixão e respeito por todas as formas de vida”, explicou. O “vermelho” simboliza o sangue, a conexão com os ancestrais e o compromisso com o espírito da terra, além de representar o coração e o amor incondicional.

“Cantar é uma maneira de se libertar de bloqueios emocionais, muitas vezes, relacionados a traumas ou experiências antigas. É como uma terapia que ajuda a resgatar a autenticidade da criança interior”

A relação entre o canto e a cura segundo essa tradição é simbólica e espiritual: cantar é uma maneira de se libertar de bloqueios emocionais, muitas vezes, relacionados a traumas ou experiências antigas. Essa prática é considerada uma terapia que ajuda a resgatar a autenticidade da criança interior, permitindo às pessoas expressarem suas verdades sem medo de julgamento. “Para cantar, você tem que se dar a permissão de liberar tudo aquilo que não te serve mais, para trazer a expressão do teu coração. Porque é o nosso coração que canta”, diz Awarani.

Por fim, Andressa do Mar, jornalista, instrutora de ioga e cantora, chegou com seu violão para nos inspirar com algumas canções do seu Rezamar e uma visão profunda do poder das palavras e da voz. “Para mim, a voz é serviço”, anunciou. Sentadas no chão, em torno dela, ouvimos composições que falam de água, fogo, terra e ar, com letras que simbolizam a transformação de “dores em flores”. “Palavras têm poder, e a vibração musical pode mudar nossa energia”, afirmou. Eu não tenho dúvidas: cantar faz minhas células felizes.

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